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Pesquisa científica com animais


Publicado em: 20/07/2009 09:43 | Categoria: Geral

 

Artigo

 A justificativa moral para o uso de animais em experimentações científicas fundamenta-se na diferença destes em relação ao ser humano. Porém a validade dos resultados das pesquisas depende do quanto estes são similares ao ser humano[1]. Tal paradoxo torna claro o âmago da questão, relacionada à moralidade da própria natureza humana.

Conforme evidenciam as pinturas rupestres, desde os tempos pré-históricos o homem observa os animais com a intenção de aprender sobre suas características e obter vantagens.

Da Grécia antiga, parte da coleção Hipocrática (400 a.C.) e do trabalho de Aristóteles (384-322 a.C.) versam sobre estudos realizados em animais. Claudius Galenus de Pergamum (conhecido na língua inglesa como Galen) (129-200 a.C.), físico, é considerado o primeiro a fazer demonstração pública de vivisecção em animais[2] e defender tal prática em criminosos.

Francis Bacon (1561-1626) defendeu a utilidade da vivisecção em animais como meio de aumentar o conhecimento do homem sobre seu corpo. Recomendou evitar a prática em criminosos, por considerar moralmente repugnante. Este foi um argumento antropocêntrico, tipicamente cristão, defendido previamente por Santo Tomaz de Aquino na Suma Teológica  (1225-1274), quem identificava a alma apenas em seres humanos e considerava os animais como objetos desprovidos de personalidade ou direitos, servindo somente às necessidades do homem[3].

Já na Idade Moderna (1453 d.C. -1789 d.C.), René Descartes (1596-1650) fortaleceu a idéia dos animais como objetos, quando considerou o corpo dos animais como máquinas, isentos de dor[4]. Neste mesmo período, Voltaire (1694-1778) contrapôs-se a prática da vivisecção e a idéia cartesiana de que os animais são insensíveis ao sofrimento[5].

Na transição da Idade Moderna para a Contemporânea (1789 d.C.), Kant (1724-1804) argumentou contra a crueldade com animais, embora seu raciocínio considerasse irrelevante a condição destes sob o ponto de vista moral. A base do argumento era antropológica, aceitava a benevolência com outras espécies como um reconhecimento dos valores intrínsecos da própria natureza humana[6].

Foram os trabalhos de Darwin (1989)[7], na Inglaterra, que contribuíram para o esclarecimento do debate sobre as similaridades e diferenças entre o homem e outras espécies. Estes estudos culminaram na aprovação da primeira legislação sobre experimentação animal (The Cruelty Animals Act,  1876)[8].

Nos anos 70 os movimentos em defesa dos animais intensificaram-se em conjunto com outros movimentos sociais, como os direitos civis, movimentos feministas e ambientalistas[9]. A intensificação do debate a respeito da experimentação em animais provocou o surgimento das primeiras publicações sobre o bem estar animal, definido como o estado do animal que influencia suas tentativas para interagir com o ambiente (diz respeito à necessidade do pesquisador em identificar a severidade dos procedimentos científicos). A partir da década de 80 surgiram os debates sobre ética e na década de 90, sobre direitos dos animais[10].

A utilização de animais é importante para aperfeiçoar os métodos de prevenção, diagnóstico e tratamento das doenças que acometem o homem. Estes estudos reduzem o número de indivíduos submetidos a intervenções totalmente experimentais.[11]

Considere-se, porém que nem todo conhecimento decorrente de experimentações em animais podem ser arbitrariamente extrapolados ao ser humano. Este é um dos principais argumentos contra tal prática. Através deste delineamento podem ser estabelecidas analogias com a condição humana, porém a teoria não pode ser confirmada ou negada através de analogias[12].

Entretanto, é consenso no meio científico que inexiste um modelo de pesquisa ideal para extrapolação aos seres humanos. Por este motivo utiliza-se aquele mais apropriado, fundamentado na continuidade evolutiva entre as espécies, no conhecimento acumulado e na adaptação dos critérios para validação dos modelos experimentais.[13]

Em síntese, se aceita a necessidade da realização de estudos in vivo, insubstituíveis por modelos in vitro, porém observada a racionalidade e a responsabilidade nos delineamentos experimentais, bem como o respeito aos seres vivos.

Com a intenção de melhorar as condições experimentais, vinculada a expectativa do estudo em proporcionar benefício imediato ou eventual para a sociedade ou animais, sedimentaram-se os princípios conhecidos como os 3Rs [14], [15] [16]:

  • Recolocação (Replacement): sugere a substituição dos animais vertebrados por outros modelos como microorganismos ou animais inferiores sempre que possível;
  • Redução (Reduction): recomenda a redução do número de animais utilizados na experimentação ao mínimo necessário;
  • Refinamento (Refinement): diz respeito à tentativa constante de minimizar o sofrimento do animal considerando o uso de anestésicos e drogas analgésicas.

 A evolução contínua do conhecimento e da complexidade social repercutiu no desenvolvimento de regulamentações éticas relacionadas às ações de experimentação animal. O Colégio Brasileiro de Experimentação Animal[17], baseado em textos internacionais, preconiza os Princípios Éticos da Experimentação Animal.

 Artigo I - é primordial manter posturas de respeito ao animal, como ser vivo e pela contribuição científica que ele proporciona;

 Artigo II - ter consciência de que a sensibilidade do animal é similar à humana no que se refere a dor, memória, angústia, instinto de sobrevivência; Apenas lhe são impostas limitações para se salvaguardar das manobras experimentais e da dor que lhe possam causar;

 Artigo III - é de responsabilidade moral do pesquisador a escolha de métodos e ações de experimentação animal;

Artigo IV - é relevante considerar a importância dos estudos realizados através de experimentação em animais, quanto a sua contribuição para a saúde humana e animal, o desenvolvimento do conhecimento e o bem da sociedade;

Artigo V - utilizar apenas animais em bom estado de saúde;

Artigo VI - considerar a possibilidade de desenvolvimento de métodos alternativos, como: modelos matemáticos, simulações computadorizadas, sistemas biológicos in vitro. O menor número possível de espécimes deve ser utilizado, se caracterizada como única alternativa plausível;

Artigo VII - utilizar animais através de métodos que previnam desconforto, angústia e dor; considerando que determinariam os mesmos quadros em seres humanos, salvo se demonstrados, cientificamente, resultados contrários;

Artigo VIII - desenvolver procedimentos com animais, assegurando-lhes sedação, analgesia ou anestesia quando se configurar o desencadeamento de dor ou angústia. Rejeitar, sob qualquer argumento ou justificativa, o uso de agentes químicos e/ou físico paralisante e não anestésicos;

Artigo IX – caso os procedimentos experimentais determinem dor ou angústia  após a pesquisa desenvolvida, aplicar método indolor para sacrifício imediato;

Artigo X - dispor de alojamentos que propiciem condições de saúde e conforto, adequados às necessidades das espécies animais mantidas para experimentação ou docência;

Artigo XI - oferecer assistência de profissional qualificado para orientar e desenvolver atividades de transporte, acomodação, alimentação e atendimento de animais destinados a fins biomédicos;

Artigo XII - desenvolver trabalhos de capacitação específica de pesquisadores e funcionários envolvidos nos procedimentos experimentais, salientando aspectos de trato e uso humanitário com animais de laboratório.

Atualmente há uma tendência da criação de comissões com o objetivo da qualificar, sob o ponto de vista ético, os protocolos de pesquisa envolvendo o uso de animais de laboratório, assumindo caráter educativo e consultivo.

 


[1] WOLFENSOHN, S.; LLOYD, M. Handbook of Laboratory Animal Management and Welfare. Oxford: Oxford University Press. 1996

[2] PAIXÃO, R.L. Ethics and Animal Experimentation: What is Debated? Caderno de Saúde Pública do Rio de Janeiro. 15 (sup. 1): 99-110, 1999.

[3] RYDER, R. D. Animal Revolution. Changing Atitudes Towards Speciesism. Cambridge: Basil Blackwell, 1989.

[4] THOMAS, K. O Homem e o Mundo Natural Mudanças de Atitude em Relação às Plantas e os Animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

[5] PAIXÃO, R.L. Ethics and Animal Experimentation: What is Debated? Caderno de Saúde Pública do Rio de Janeiro. 15 (sup. 1): 99-110, 1999.

[6] RYDER, R. D. Animal Revolution. Changing Atitudes Towards Speciesism. Cambridge: Basil Blackwell, 1989.

[7] DARWIN, C. A origem das espécies. Trad. FONSECA, E. Rio de Janeiro: Hemus, 1981, 471p.

[8] RYDER, R. D. Animal Revolution. Changing Atitudes Towards Speciesism. Cambridge: Basil Blackwell, 1989.

[9] PAIXÃO, R.L. Ethics and Animal Experimentation: What is Debated? Caderno de Saúde Pública do Rio de Janeiro. 15 (sup. 1): 99-110, 1999.

[10] PAIXÃO, R.L. Ethics and Animal Experimentation: What is Debated? Caderno de Saúde Pública do Rio de Janeiro. 15 (sup. 1): 99-110, 1999.

[11] MARQUES, R. G.; MIRANDA, M. L.; CAETANO, C. E. R; BIONDO-SIMÕES, M. L. P. Rumo à Regulamentação da Utilização de Animais no Ensino e na Pesquisa Científica no Brasil. Acta Cirúrgica Brasileira. 20(3):262-67, 2005.

[12] SHARPE, R. Animal Experiments. A Faield Technology. In: Animal Experimentation. The Consensus Chenges. London: The Macmilan Press Ltd., PP. 11-18, 1989.

[13] HELD. J. R. Appropriate Animal Models. Annals of the New York Axademy of Sciences. 406:13-9, 1983.

[14] BUSS, P. M. Uma Lei Inoportuna Sobre o Uso de Animais em Pesquisas Científicas. Jornal da Ciência. SBPC. Ano XX. N. 576, Junho, 2006.

[15] PATON. W. Man and Mouse. Animals in Medical Research. Oxford: Oxford University Press, 1993.

[16] RUSSEL, W. M. S., BURCH, R. L. The Priciples of the Human Experimental Technique. England: Universities Federation for Animal Welfar. 1992.

[17] COLÉGIO BRASILEIRO DE EXPERIMENTAÇÃO EM ANIMAIS. Animais de Laboratório. Disponível em http://www.bio.ufpr.br/ceea/doc/principios/principioseticos-COBEA.doc. Acesso em 09/02/09.

 

Autora:

Giórgia Bach Malacarne, Procuradora do CRMV-PR (advogados@crmv-pr.org.br)


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