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A casa de Louis Pasteur (1822-1895) De volta para o passado: uma visão de futuro
Artigo
Ao visitar Paris no verão de julho de 2008, não poderia deixar de conhecer o famoso Instituto Pasteur de Paris, situado no calmo e belo bairro de Montparnasse, à Rua Dr. Roux, 28. Inaugurado em 14 de novembro de 1888, por iniciativa de Louis Pasteur e das múltiplas doações governamentais vindas de todas as partes do mundo como aquelas do Império do Brasil, autorizadas por Dom Pedro II. Graças ao sucesso alcançado com os tratamentos obtidos com a vacina antirrábica, única alternativa viável para esta doença letal, o Instituto Pasteur de Paris tornou-se em pouco tempo o maior centro mundial de pesquisa nas áreas de Medicina Preventiva Humana e Veterinária.
Prédio austero de dois andares, cujas janelas do segundo andar afloram do próprio telhado, conserva ainda intacta a imponência do passado. Seu estilo é aquele vigente em toda Paris do Século XVII, com telhados cinzentos que sobressaem bucólicas chaminés nos fazendo lembrar dos rigorosos invernos parisienses. Sua arquitetura se harmoniza perfeitamente com a da cidade. A beleza se caracteriza pela riqueza de verdes plátanos que dão ao visitante, a impressão de estar passeando em um imenso jardim exuberante em árvores, flores e folhas de um verde claro brilhante só visto em Paris. Logo na entrada, fomos recepcionados por uma funcionária do Instituto, que nos conduziu ao mundo de Louis Pasteur: seu laboratório de experimentos microbiológicos e seu lar!
Os livros de microbiologia nos falam da grande atuação profissional de Pasteur, exercida no interior de diversas regiões da França numa seqüência de experimentos que parecem ter vindo com o objetivo de torná-lo o porta-voz do mundo microbiológico. Para todos os problemas, Pasteur encontrava uma solução. Primeiramente, com a doença do bicho da seda denominada de pebrina na província de Alais. Na seqüência em Lille, resolveu os problemas que tornavam o vinho azedo sugerindo o processo de aquecimento como forma de descontaminação. Anos depois realiza o famoso experimento na Fazenda Puilly-le-Fort, cujos resultados obtidos com a vacinação contra o Antrax, livraram os criadores de ovinos dos famosos “campos malditos”.
Considerava-se um homem do campo e escolheu Arbois, como sua cidade preferida para descanso com a família, onde passava as férias entre os vales verdejantes das montanhas do Jura. Entende-se então, o porquê de Pasteur vivenciar todos os problemas que surgiam naquelas regiões. Nos arredores desta cidade, situada quase na divisa com a Suíça, vislumbram-se grandes trigais dourados nas planícies, vinhedos e parreirais, os quais se projetam pelas encostas montanhosas, pomares com amoreiras para produção da fina seda francesa, bem como a presença constante de cabras e carneiros. Pasteur era o homem certo, no momento certo e no local certo.
Aos oito anos de idade, gritos de dor vindos de uma ferraria da cidade lhe chamaram a atenção. Eram de pessoas mordidas por cães raivosos que se submetiam ao tratamento de cauterização das lesões expostas com ferro em brasa. Seria este um primeiro aviso de sua grande missão que estaria por vir?
Mas foi em Paris, com as pesquisas com a vacina antirrábica, que ele se tornou célebre no mundo inteiro. Imagina-se quão difícil foi para Pasteur, acostumado a ver em seu microscópio agentes bacterianos, ter que admitir que o agente causador da Raiva no cérebro de animais infectados não se mostrava visível! Logo para Pasteur que advogava a quatro ventos que as doenças infecciosas dos animais nada mais eram do que “epidemias de fermentação”. Onde estaria o agente causador da fermentação rábica? Um ser invisível? No entanto, Pasteur ao instituir a famosa “prova biológica” sabia por intuição que o agente infeccioso estava ali presente.
Este cruel enigma que atormentava Pasteur por centenas de dias e noites, revelaria na verdade o nascimento de um segmento novo da microbiologia: a virologia. Com grande inspiração declara ao mundo da ciência numa magnífica visão de futuro: “Estou tentado a acreditar que um micróbio de infinita pequenez, sem forma bacilar ou de coco é o causador da raiva”. Mais uma vez Pasteur estava certo. O agente causador da Raiva, só poderia ser visto e mensurado quase um século depois com a utilização da microscopia eletrônica, quando Dr. Atanasiu em 1963, revelou tratar-se de uma partícula nanométrica invisível ao microscópico ótico comum.
Contando com o apoio do grande médico e microbiologista Dr. Emily Roux, Pasteur pode trabalhar com vacinações em humanos tornando-se rapidamente conhecido, admirado e um dos 40 membros da Academia Francesa de Ciência.
A maior surpresa foi descobrir que Louis Pasteur morava no próprio Instituto Pasteur, tal o prestígio por ele alcançado. Se dividirmos o prédio central do Instituto em quatro partes, um quarto do mesmo corresponderia à casa do grande cientista sendo os três quartos restantes destinados à área de pesquisa e experimentos microbiológicos. Em seu laboratório de microbiologia encontramos tudo como ele deixou. Seus armários envidraçados de cor verde claro e em suas prateleiras internas, os frascos com os famosos cristais que o notabilizaram em experimentos com cristalografia, descobertas até hoje aceitas pela ciência moderna como verdadeiras.
Em outra sala contígua a esta, ficava seu laboratório de experimentos microbiológicos e seus instrumentos de trabalho: o famoso forno de Pasteur por ele inventado (não havia autoclave na época); os tubos de ensaio contendo culturas de esporos de Bacillus anthracis que dizimava os rebanhos franceses; e os frascos de vidro com colo em pescoço de cisne usados para provar as contaminações vindas do ar. Podemos ver também as famosas “pipetas de Pasteur”, com as quais, com segurança, aspirava a saliva de cães raivosos.
Como Louis Pasteur, com tão poucos recursos técnicos disponíveis, contribuiu tanto para a humanidade? Ao deixar o seu laboratório para traz senti-me um humilde admirador e discípulo, ainda mais admirador do que antes.
Dirigimo-nos então a moradia de Pasteur, acompanhados pela guia nos lembrando sempre da proibição de tirar fotos. Um saguão separa a grande porta de sua residência no primeiro andar do instituto de microbiologia, que fica no lado oposto. Deparei-me, então, com o inesperado. O inusitado! Viveria naqueles 30 minutos futuros de visita a mais emocionante experiência profissional de minha vida. A grande chave usada para abrir a porta, ainda é a mesma que sempre guardou seu lar.
Um ar de mistério e suspense tomou conta de mim quando a antiga porta rangeu ao abrir. O cenário exalava Pasteur. Era como se ele estivesse ali. Tive a impressão de estar contracenando em um surrealista filme no estilo “De volta para o futuro”. A partir do hall de entrada de sua casa, a emoção de estar ali é a sensação mais forte e esta vai tomando conta de sua mente, minuto a minuto por todo o tempo da visita.
No longo corredor de entrada que conduz às outras salas da casa, nota-se nas paredes, a presença de pequenos quadros pintados a óleo, pelo próprio Louis Pasteur. Pintura era seu hobby preferido nas horas vagas em suas férias em Arbois. Todas as salas da casa apresentam tapetes grossos e coloridos que tornam silenciosos os passos dados pelos visitantes. A mobília de fino gosto pertence ao elegante estilo da “Belle Èpoque”, típico do final daquele século.
A sala de refeições, a maior entre todos os cômodos da casa, chama a atenção pelas dimensões e tem ao centro uma mesa de madeira escura para abrigar, no mínimo, vinte pessoas.
Nas paredes desta sala podemos ver dois grandes quadros pintados a óleo: um deles seu auto-retrato e outro de seu grande inspirador, que como ele, acreditava na existência de um mundo microbiológico invisível. Ao lado de um dos quadros destaca-se uma grande lareira indispensável para os dias de inverno. Pasteur nos momentos de lazer notabilizava-se por ser um bom gourmet e um magnífico anfitrião. Gostava de receber seus amigos para saborear um bom vinho tinto francês. Percebe-se em todas as salas da casa de Pasteur as grandes janelas que dão a todos os ambientes internos uma claridade invejável.
Por uns poucos segundos, através das vidraças das janelas de sua casa olhei para a Paris de hoje. Moderna, atual, com seus carros coloridos, transeuntes descontraídos vivendo o momento atual. Tive a forte sensação de que o tempo dentro daquela casa parou para ver o mundo passar. Seu quarto de dormir, suas muitas medalhas ganhas em reconhecimento pelos brilhantes feitos. Sua beca negra e seu famoso quepe para o uso em cerimônias oficiais.
Os quadros a óleo de sua esposa Marie, de suas filhas Jeanne, Camile e Cecile, falecidas ainda bem jovens e de Marie Louise a única sobrevivente que lhe deu netos e que trazem ao visitante a impressão de como foi dura a sua vida. São faces de rostos queridos por Pasteur que ajudam a formar o ambiente daquela casa histórica. A escada de madeira que o levava ao segundo andar, com degraus rebaixados devido aos seus problemas de hemiplegia, igualmente rangem ao peso dos passos dados e inevitavelmente nos fazem lembrar dele.
Segundo contam, a sala de estar neste segundo andar no final do longo corredor era a sua preferida. É também sem dúvida a mais exótica de todas. Ali, após as refeições, Louis Pasteur descansava nas cadeiras preguiçosas, lendo as notícias dos jornais parisienses Le Figaro e Le Monde para, na sequência, tirar uma ligeira sesta, antes das atividades da tarde. Nas paredes desta sala, iluminada pelos altos janelões, estão os souvernirs recebidos de seus amigos. Presentes vindos do mundo inteiro! Destaca-se entre todos a presença de um enorme dente de elefante presenteado por Alexander Yersin, seu discípulo, amigo e colega de trabalho. Yersin lembrou-se do grande mestre quando estava na Indochina trabalhando com pesquisas sobre a etiologia da Peste Bubônica, a serviço do Instituto Pasteur. Há também um quadro, seu último autorretrato pintado um pouco antes de seu falecimento.
Tive a impressão que Pasteur exprime em seu rosto e em seu olhar a imensa amargura de ter perdido suas filhas, de saber que estava no fim da vida e que pouco poderia ainda contribuir para a ciência. Pareceu-me que Louis Pasteur gostaria de viver mais 100 anos tal sua fascinação pelas novas descobertas, pelos mistérios que o circundavam e que tiravam dele horas e horas de sono. Os desafios diários só o impulsionavam ainda mais pelas novas descobertas e esta era a sua principal característica, só vista e sentida pelos verdadeiros cientistas. Nunca desistir! Jamais esmorecer!
Por fim, fomos levados a “Chapelle Funéraire” onde repousa seu corpo e o de sua esposa Marie Laurent no porão do prédio. Pasteur faleceu na Villeneuve-L`Etang em Saint-Claude, no dia 28 de setembro de 1895. No dia de seu enterro, com honras de Estado, Paris parou para vê-lo passar num ataúde puxado por quatro cavalos negros como forma de expressar o profundo luto de toda nação francesa.
A capela foi erguida em sua homenagem por iniciativa de seu filho Jean Baptiste. O ambiente do seu interior a meia luz, traz ao visitante um aspecto solene e triste. Fomos tomados por um sentimento de profundo respeito. Nas paredes revestidas em mosaico ladrilhado em tom amarelo claro, estão desenhados seus feitos em ordem cronológica que preenchem todos os anos de sua vida científica. No teto, estão escritos os paradigmas de Pasteur: esperança, fé, caridade e.... ciência.
Pasteur era espiritualista e acreditava na vida após a morte. Mais ao fundo da capela está o túmulo de sua fiel companheira de tantas emoções e sofrimentos. Marie Laurent faleceu cinco anos após Louis Pasteur e em sua lápide consta a seguinte inscrição: “Aqui jaz Marie, esposa de Pasteur, companheira da vida terrena e espiritual”.
O último discurso de Pasteur foi proferido por seu filho na Universidade de Sorbonne, pois já se encontrava sem condições físicas para tanto. Parecia antever o futuro de paz que viria com a criação do Tratado da União Européia em 1992, quase 100 anos após sua morte. Neste discurso vale lembrar este pequeno trecho: “Senhores.... vós me proporcionais a maior felicidade que possa ser experimentada por um homem cuja fé inabalável acredita que a ciência e a paz, hão de triunfar sobre a ignorância e a guerra... Nunca vos deixeis desacorçoar pela tristeza de certas horas que passam pelas nações e pelos corações do homem.... Tende fé que as nações hão de aprender a unir-se, não para a destruição, mas para a cooperação. O futuro pertencerá, não aos conquistadores, mas aos salvadores da humanidade...”
Ao deixar para traz o mundo de Louis Pasteur, estancado no tempo, minha esposa, minha filha e eu, estávamos profundamente sensibilizados, com olhos vermelhos de tanta emoção.
Referências
The Natural History of Rabies. George M. Baer. IIª Edição, CRC Press, Boston, 1991.
Living Biographies of Great Scientists. Henry Thomas e Dana Lee Thomas. Vida de Grandes Cientistas. Editora Globo, Porto Alegre.
Por Dr. José Francisco Warth
Professor de Doenças Infecciosas da UFPR
labmicro@ufpr.br